04/03/2022

A última partida de roleta realizada no Brasil ocorreu no famoso Hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, em abril de 1946. Depois desse giro barulhento e derradeiro, os jogos de cassino e outros do mesmo tipo, apelidados de azarentos porque é a banca que, de fato, detém a sorte nesse negócio, foram proibidos, por força de uma lei estabelecida pelo presidente Eurico Gaspar Dutra. A justificativa para a imposição da norma é que tais atividades passaram a ser consideradas degradantes por causarem vício. De lá para cá, houve idas e vindas dos bingos, mas os cassinos, e o mais popular entre eles, o jogo do bicho, passaram a funcionar apenas ao arrepio da lei.

Ocorre, no entanto, que se voltou a discutir o tema da liberação dos jogos na Câmara. E mais, a Casa aprovou o texto-base na semana passada com o envolvimento pessoal do seu presidente, Arthur Lira, um dos maiores entusiastas da matéria. Com a aprovação, o presidente Jair Bolsonaro entra numa saia justa. De um lado, estarão seus apoiadores da bancada evangélica, que têm ojeriza ao tema, e de outro, o Centrão, grupo que dá base para o funcionamento do governo e só pensa em arrecadação. Nesse grupo, está seu filho, o senador Flávio, lobista dos cassinos de Las Vegas. Na prática, se houver a anuência do Senado, algo dado como certo, Bolsonaro ficará entre a cruz e a espada. Em público afirmou que vai vetar, mas, nos bastidores, a pressão pela sanção só cresce.

O cientista político Marco Antonio Teixeira, da Fundação Getúlio Vargas, vê esse lance de Bolsonaro como história para inglês ver. “Ele vai vetar para ficar bem com a bancada evangélica”, diz. “Na verdade, se quisesse, teria articulado para barrar o projeto na Câmara”, pontua. Ainda segundo Teixeira, a intenção do presidente é transmitir o ônus político ao Congresso, que futuramente poderá derrubar o veto presidencial. Como tudo no Legislativo é envolto em polêmica, a proposta de institucionalização dos jogos de azar no Brasil não seria diferente. Durante a votação, deputados do PT queriam que a alíquota bruta sobre os jogos fosse de 30%, muito mais do que foi estipulado, 17%. “Ao invés de aumentar a arrecadação, ela vai diminuir” sentencia Sâmia Bomfim, deputada (PSOL-SP), que votou contra o projeto. Ela diz que os empresários não vão pagar nada além da porcentagem descrita. “O CNPJ é um só. Suspeitamos que deve proporcionar lavagem de dinheiro, dado que pouquíssimas pessoas terão condições financeiras para abrir um negócio do tipo”. A deputada explica também que pode haver favorecimento a amigos do clã Bolsonaro. O senador Flávio Bolsonaro, filho 01 do presidente, esteve em um cassino nos EUA com um magnata do ramo, que é financiador de Donald Trump, “Tudo a ver”, diz. Se o projeto avançar, 292 bicheiros, 33 cassinos e 1 492 bingos estarão mais perto de serem licenciados em todo o País.

O texto estabelece que serão permitidos três cassinos em estados com mais de 25 milhões de habitantes. São Paulo, por exemplo, poderá ter essa quantidade de estabelecimentos. Já em locais com mais de 15 milhões de pessoas, como Rio de Janeiro e Minas Gerais, a licença será para apenas dois cassinos. A quantidade de casas de jogos, porém, poderá aumentar substancialmente dado que o projeto prevê a criação de espaços dentro de hoteis de luxo, resorts, navios e, ao mesmo tempo, estarão liberados para atuar no turismo. Ou seja, essas empresas poderão operar em locais considerados patrimônio natural da humanidade, que hoje são sete: Fernando de Noronha, Parque Nacional do Iguaçu, Pantanal, Parque Nacional de Anavilhanas, Costa do Descobrimento e áreas do Cerrado e da Mata Atlântica.

Os bingos, por sua vez, funcionaram até o ano de 2004. Então, nesse caso, se projeto for aprovado em definitivo, também terão sua permissão de funcionamento automaticamente dada. Agora, o jogo de bicho é um caso à parte. Mesmo transgredindo a lei, sua atuação é ininterrupta e ocorre normalmente em todo o País, faz parte da cultura nacional. Caiu no gosto dos brasileiros desde o final do século 19. No Rio, a contravenção alcançou até contornos românticos e personagens folclóricos. Em outras palavras, para o jogo do bicho sempre há alguém disposto a fazer uma fezinha. Consta no projeto de Lei que bicheiros e donos de bingos interessados em empreender devem ter capital inicial de R$ 10 milhões.

Um dos principais pontos discutidos pelos parlamentares foi o potencial de arrecadação que a liberação dos jogos de azar pode gerar: R$ 4,5 bilhões por ano em tributos, que devem ser divididos entre a União, estados e municípios. “Além de regularizar as atividades, queremos aumentar a oferta de empregos, com 700 mil novas vagas”, diz o deputado Felipe Carreras (PSB-PE), relator da proposta. Ele informa que a lei vai regulamentar também os mais de três mil jogos online existentes. “As pessoas estão conscientes e querem regularizar seu negócio”, afirma.

Fonte: istoe.com.br